Pescado da Lagoa de Araruama e arroz produzido em Cantagalo reivindicam IG no RJ
Termo de origem francesa, terroir define uma extensão limitada de terra. Ao longo do tempo, o universo vinícola foi se apropriando do conceito, que passou a reunir as características específicas referentes à geografia, à geologia e ao clima de um lugar onde se cultiva uvas. As Indicações Geográficas (IGs) identificam produtos que possuem características específicas devido à sua origem e à região onde são produzidos. Outro atributo importante que caracteriza a IG é a forma de cultivo/produção, as heranças histórico-culturais, os saberes e fazeres dos produtores locais passados a cada geração.
Muito comum na Europa e agora em plena ascensão no Brasil, a IG também tem como função proteger a região produtora e valorizar o produto no mercado. A IG garante que aquele produto apresenta características de um terroir único, que combina fatores humanos e naturais, com qualidades particulares, para proporcionar ricas experiências sensoriais. Entre os exemplos de produtos certificados e identificados com IGs estão os vinhos tintos da região de Bordeaux, o presunto de Parma, o champagne da região homônima, o queijo Grana Padano, entre outros.
No Brasil, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) é a instituição que concede o registro legal de Indicação Geográfica. Há duas modalidades de IG: a Indicação de Procedência, que valoriza o nome geográfico (país, cidade, região ou localidade) reconhecido pela produção, fabricação ou extração de determinado produto ou serviço; e a Denominação de Origem: nome geográfico que identifica produto ou serviço dotado de características devidas, exclusivamente, ao meio geográfico (fatores naturais e humanos).
A fim de apoiar as IGs no Estado do Rio, a FAPERJ lançou, em setembro de 2022, o programa intitulado Apoio à Promoção de Indicações Geográficas no Estado do Rio de Janeiro, com dotação inicial de R$ 4 milhões. O resultado final do programa foi anunciado em maio de 2023 com a aprovação de 10 das 18 propostas inicialmente apresentadas, com previsão de execução entre 18 e 24 meses. Desde o primeiro registro de Indicação Geográfica concedida pelo INPI, para o Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, transcorreram 20 anos. Hoje, segundo o Sebrae, o Brasil possui mais de 100 IGs que abrangem produtos tradicionais como vinho, café, cacau, banana, uva e outras frutas; passando pelos queijos do Serro, Canastra e Marajó, entre outros; até o mel, entre eles o do Mel dos Manguezais de Alagoas, o Mel de Aroeira do Norte de Minas, a Região da Própolis Verde de Minas Gerais, todos com IG de Denominação de Origem.
Entre os projetos aprovados pela FAPERJ, dois têm características bastante peculiares: a tainha pescada na Lagoa de Araruama, na Região dos Lagos, e o arroz “anã” produzido em Porto Marinho, localidade do distrito de São Sebastião do Paraíba no município de Cantagalo, Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Ambos os projetos estão sob a coordenação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na unidade Agroindústria de Alimentos, mas contam a participação fundamental de outras instituições e outras unidades da própria Embrapa, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Ministério da Agricultura, a Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Fiperj) a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), empresas particulares e a sociedade civil.
O adjetivo anã está relacionado à baixa altura da planta e não ao grão de arroz |
Arroz Anã
O Arroz Anã produzido em Porto Marinho é um dos candidatos à Indicação Geográfica com Denominação de Origem. O nome, que parece ser um erro de concordância, tem seu adjetivo relacionado à baixa altura da planta (anã) e não ao arroz, assim como a banana nanica, que é um fruto grande, mas que nasce em uma planta baixa. A pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos Cristina Yoshie Takeiti explica que a identificação do potencial do território como candidato à IG ocorreu em 2020, pelo Sebrae, que vem realizando o levantamento de regiões e produtos em todo o Brasil com potencial para Indicação Geográfica. Dos 10 quesitos avaliados, cuja nota máxima por quesito é 5, o Arroz Anã praticamente “gabaritou”, recebendo conceito 4 apenas no que se refere à pesquisa, daí a importância da Embrapa.
Cristina, que é graduada em Engenharia de Alimentos, mestre em Alimentos e Nutrição, doutora em Tecnologia de Alimentos e Pós-Doutora em Pós Colheita, conta que seu primeiro experimento com o Arroz Anã foi em casa. Descendente de oriental (seu pai é japonês), ela diz que tem uma coleção de diferentes tipos de arroz, alimento base no Japão e em outros países do Oriente. Ao cozinhar uma porção do produto, sua filha de nove anos sentiu o aroma e perguntou se ela estava fazendo Arroz Basmati, de origem indiana, bastante aromático e levemente adocicado. Ela explica que tanto o Arroz Basmati quanto o Jasmim possuem 2-Acetil-1-pirrolina, um composto de aroma e sabor que também está presente no Arroz Anã. Na degustação, esses atributos foram confirmados e logo Cristina levou o restante do produto para o laboratório da Embrapa, comprovando a textura diferenciada, a capacidade de inchamento e a viscosidade do pequeno grão.
O Anã possui características do arroz de origem indiana, com maior teor de amilose; e do japônico, com maior teor de amilo pectina, usado na culinária oriental |
“Ele guarda as características do ecótipo Indica, do arroz de origem indiana, com maior teor de amilose; e do japônico, com maior teor de amilo pectina, usado na culinária oriental”, especifica a pesquisadora. Para detalhar a composição química do Arroz Anã, Cristina convidou a pesquisadora Mariana Simões Larraz Ferreira, Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ, pesquisadora do Centro de Inovação em Espectrometria de Massas do Laboratório de Bioquímica de Proteínas, do Núcleo de Bioquímica Nutricional da UniRio. Cristina conta que o Instituto Inovates vai colaborar com os trâmites para a requisição da IG junto ao INPI. Foi o instituto que recentemente conseguiu Indicação Geográfica para a pouco ácida, superdoce e saborosa laranja cultivada em Tanguá, cuja Denominação de Origem abrange também os municípios de Itaboraí, Rio Bonito e Araruama.
Não se sabe a origem do Arroz Anã, mas a história que circula na Associação dos Produtores Rurais, Pescadores, Artesãos, Moradores e Amigos de Porto Marinho e Entorno é que “alguém trouxe as sementes na década de 1960 e desde então os produtores guardam um pouco do arroz colhido para o replantio”. Para preservar esse material genético valioso, foi convidado um melhorista da Embrapa Arroz e Feijão para guardar as sementes no banco ativo de germoplasma. Irrigado com as águas do rio Paraíba do Sul, o arroz colhido é colocado para secar nos lajeados às margens do rio, num trabalho cooperativo no qual cada produtor fica encarregado de revolver os grãos até que eles emitam um som característico que indica que está seco. Só então é descascado.
Herdada de tradições indígenas, a pesca conhecida como gancho de peixe é composta por armadilhas de estacas de madeira e rede que formam um “curral” para capturar o peixe no momento do salto (Foto: Conservação Internacional Brasil) |
O projeto intitulado “Estratégias para a aliança de competências, levantamento das evidências naturais, humanas e científicas para a obtenção da Denominação de Origem do Arroz Anã de Porto Marinho” também contará com a colaboração da Emater, do Sebrae, da Embrapa Solos, que ficará responsável pela delimitação geográfica da área da IG e a Embrapa Agrobiologia, que identificará espécies polinizadoras que parecem contribuir definitivamente para o “enchimento dos grãos”, além de um bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Tainha da Lagoa de Araruama
Considerada a lagoa mais salgada do mundo, com uma salinidade média de 52%, o que corresponde a uma vez e meia a do oceano (que possui salinidade em torno de 35%), a Lagoa de Araruama, com seus 220 km, banha seis municípios da Região dos Lagos: Araruama, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, Saquarema e São Pedro da Aldeia. Seu nome deriva da língua Tupi e está relacionado à existência de conchas e mariscos, mas, nas suas águas, que se comunicam com o mar através do Canal do Itajuru, em Cabo Frio, vivem e se reproduzem moluscos e crustáceos (como o grande e valorizado camarão rosa), e cerca de 40 diferentes espécies de peixes, entre eles a tainha, principal fonte de renda para cerca de 600 famílias que vivem no entorno da lagoa.
São exatamente as características singulares de textura e sabor da tainha e o tipo de pesca praticado na Lagoa de Araruama que a qualificam a solicitar um selo de Indicação Geográfica (IG). Tais características lhe conferem uma identidade própria e diferenciada das demais tainhas disponíveis no mercado. Além disso, a capacidade de organização social dos pescadores familiares, que mantêm um tipo de pesca tradicional secular, também agrega valor ao produto.
A textura e o sabor diferenciados da tainha da Lagoa de Araruama atraíram restaurantes japoneses, que usam o pescado para o preparo de sushi e sashimi (Foto: Ascom Araruama) |
O projeto, também coordenado pela Embrapa Agroindústria de Alimentos, conta com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Ministério da Agricultura, Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Fiperj) Cabo Frio, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e prefeituras e secretarias dos municípios.
A zootecnista Fabíola Helena dos Santos Fogaça, que atua na Embrapa Agroindústria de Alimentos desde 2018, coordena o projeto. Ela explica que a salinidade da Lagoa de Araruama varia de acordo com três diferentes zonas: a mais próxima do mar, menos salina, a intermediária, com salinidade média, e a mais próxima da areia da praia, com salinidade maior devido a menor movimentação da água. A tainha, uma das espécies adaptadas à maior salinidade, predomina na área intermediária, onde ela também se reproduz e é protegida durante o período de defeso, quando a pesca é proibida.
Outra característica considerada no projeto de solicitação da IG para a região, que reúne sete associações e/ou colônias de pescadores, é a forma de pescar, que vem passando de geração a geração há cerca de quatro séculos. Há duas modalidades de pesca artesanal, herdadas de tradições indígenas. A conhecida como gancho de peixe, composta de armadilhas de estacas de madeira e rede que formam um “curral” para capturar o peixe no momento do salto. Já a modalidade chamada rede de cerco é uma pesca em equipe, na qual as embarcações cercam os peixes para que eles fiquem presos nas redes.
As pesquisadoras da Embrapa Cristina Takeiti (à esq.) e Fabíola Fogaça trabalham para a obtenção de Indicação Geográfica (IG) para a tainha pescada na Lagoa de Araruama, na Região dos Lagos, e o arroz ‘anã’ produzido em Porto Marinho, localidade do distrito de São Sebastião do Paraíba, no município fluminense de Cantagalo |
A Organização Não Governamental (ONG) Conservação Internacional do Brasil (CI-Brasil) viabilizou um projeto de rastreabilidade que permitirá ao consumidor conhecer detalhes do peixe que vai consumir, como, por exemplo, o local da lagoa em que foi pescado. Uma etiqueta com QR Code presa ao peixe disponibilizará informações como o nome do pescador, qual técnica ele usou, data e local da captura, o tamanho do peixe etc, informações que garantem a sustentabilidade da atividade. Esses diferenciais atraíram restaurantes japoneses do Rio de Janeiro, que vêm comprando a tainha diretamente dos produtores para uso em sushis, sashimis e demais pratos da culinária oriental.
Quem já provou a tainha da Lagoa de Araruama garante que a alta salinidade confere melhor textura e sabor mais intenso. Fabíola explica que o projeto está na fase do levantamento e confirmação dos locais de pesca e da análise da organização social dos pescadores. A partir de janeiro de 2024, mês em que a pesca é autorizada, a Embrapa dará início às análises das características nutricionais (minerais, aminoácidos etc) dos peixes e dos diferenciais do ambiente, por meio de amostras de água e solo. Após este levantamento, Fabíola explica que é gerado um Caderno de Informações Técnicas, que subsidiam o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) no processo de concessão da IG.
Fonte: FAPERJ (adaptada)