Governo já tem PL para regular plataformas e diz que Marco Civil não é ‘imutável’
O governo já tem praticamente pronta a proposta de projeto de lei para regulação das plataformas na internet. O ministro da Justiça, Flavio Dino, aproveitou debate promovido pela FGV nesta segunda, 13/3, para alinhar os principais pontos da minuta e adiantou que só resta uma dúvida: se haverá ou não a criação de um novo órgão para tratar do tema.
“A crise da democracia representativa leva a uma valorização ou idealização dos instrumentos da democracia direta como sendo qualitativamente superiores. E a internet foi saudada como uma espécie de ágora perfeita, instancia máxima da democracia. Ilusão perdida, porque a essas alturas sabemos bem que essa ágora é tão imperfeita quanto àquela outra, no sentido de que não há horizontalidade ou a descentralização cidadã que desejamos”, disse o ministro durante o seminário Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia.
A proposta trata de responsabilização das plataformas, pelo lado de maior transparência das decisões – como a de não excluir determinado conteúdo – com auditoria aberta ao controle público. Outro ponto importante é o chamado ‘dever de cuidado’, transposto do Código Civil para a vida online. E isso implica na identificação de conteúdos ilegais, especialmente em relação a crianças e adolescentes, direitos humanos, crimes contra a democracia e terrorismo. A proposta também prevê procedimentos que devem ser adotados no “processo” de remoção de conteúdo. A proposta será entregue ao presidente da Câmara, Arthur Lira, e ao relator do PL 2630/20, mais conhecido como PL das Fake News, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).
Para Flávio Dino, o debate sobre a regulação das plataformas sobrevaloriza para a rede questões que não recebem o mesmo tratamento no mundo físico. “Por vício profissional devo lembrar o óbvio: não há esfera de privacidade desregulada. Nem quando os cônjuges se encontram no lar, sempre é uma relação a três. Porque sempre estarão os cônjuges e o ordenamento jurídico, a Lei Maria da Penha, o Código Civil, o Código Penal. Que privacidade é essa da internet que seria superior mesmo à privacidade no recinto mais sagrado onde ela nasce, o lar. Claro, portanto, que isso é pura ideologia, no sentido de falseamento.”
O ministro da Justiça lembrou os cinco anos sem respostas ao assassinato de Marielle Franco e que o episódio evidenciou o período de disseminação do discurso de ódio no Brasil, presente há ainda mais tempo. “Amanhã se completam cinco anos que a vereadora Marielle Franco foi assassinada, no Rio de Janeiro. Lembro isso, além da homenagem, porque só é possível entender esse debate compreendendo que vivemos uma quadra histórica similar à que se verificou na Europa 100 anos atrás, em que a manipulação afetos é constituinte da luta política. E manipulação de afeto sobretudo na dimensão do ódio. O que foram os 10 últimos anos da política brasileira? A hegemonia do ódio, de 2013 a 2023. Marielle foi assassinada e no dia seguinte, políticos e autoridades, inclusive do Poder Judiciário, entre outros, se dedicaram a mata-la novamente. E até hoje é como se houvesse um homicídio por dia. Esse caso da Marielle serve de referencia para aquilo que o Brasil não deve ser, não pode ser. E talvez esse debate sobre internet possibilite uma porta, e que consigamos sair desse labirinto de ódio e de vale-tudo em que a política brasileira se viu imersa nesses últimos 10 anos.’
A seguir, o que disse o ministro sobre cada ponto da proposta:
“Em primeiro lugar, transparências e auditorias. Se estamos tratando de decisões humanas, elas devem ser transparentes e auditáveis, para que haja controle social, controle público, acerca de quem conforma a cidadania digital no Brasil. Em segundo lugar, dever de cuidado. Nenhuma atividade humana é destituída desse dever. E esse dever de cuidado se traduzirá em relatórios, a nossa proposta, semestrais, a cerca do que se passa nas moderações, nos impulsionamentos, nas retiradas de conteúdo, e assim sucessivamente.”
“Esse dever de cuidado é mais rigoroso em certas circunstancias, alinhado à prática de outros sistemas jurídicos, mormente hoje o da União Europeia. Claro que o artigo 21 do atual marco civil da internet já introduz esse conceito, quando trata de situações de violadoras do direito à intimidade no que se refere à práticas sexuais. Ou seja, essa gradação valorativa já consta do ordenamento jurídico brasileiro, que excepciona no 21 o artigo 19 do MCI. Por isso mesmo estamos propondo que esse dever de cuidado seja mais qualificado quando se tratar de temas de crianças e adolescentes, direitos humanos, crimes contra o estado democrático de direito, terrorismo. E não há aqui margem para subjetivismos insuportáveis para o ordenamento jurídico, a não ser aqueles que fazem parte da vida.”
“O terceiro pilar é o conceito de procedimentalização. Devido processo legal, artigo 554 da Constituição, ninguém será privado da liberdade e de seus bens sem o devido processo legal. Então transpor esse conceito para esse mundo virtual, o devido processo legal administrativo, no que se refere às plataformas, com notificações, prazos, etc, e transparência. E em alguns casos, responsabilidade civil. Não são todos, mas alguns. Porque se uma plataforma viola o dever de cuidado podendo cumpri-lo, claro que é civilmente responsável, à luz do vigente Código Civil, pela teoria do risco, por exemplo.”
“Temos em aberto apenas um tema nesse conjunto de propostas. A existência ou não, e em que termos, de um órgão regulador. Esse é um tema fundamental que estamos ainda debatendo, inclusive com o próprio relator. Órgão regulador que deve ter certos atributos de independência, claro, envolver a sociedade civil, envolver empresas de checagem, por exemplo, mas com leveza. Não pode ser a criação de um novo aparato burocrático, pesado, de difícil manejo, porque isso se choca contra a própria lógica da internet. Mas tenho a impressão que o deputado Orlando e seus colegas, e posteriormente no Senado, vamos todos nesse debate tão importante, encontrar boas soluções para isso.”
Fonte: Convergência Digital